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Rio de Janeiro

Comemorando 50 anos de Vila Isabel, Martinho reviverá 'Kizomba' na avenida

Martinho da Vila na Sapucaí, defendendo a Vila Isabel no desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio em 2016 - Marcelo de Jesus/UOL
Martinho da Vila na Sapucaí, defendendo a Vila Isabel no desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio em 2016 Imagem: Marcelo de Jesus/UOL

Anderson Baltar

Colaboração para o UOL

17/02/2017 04h00

Aos 79 anos recém-completos -- fez aniversário em 12 de fevereiro -- Martinho da Vila é um dos maiores nomes da história da música popular brasileira, com uma trajetória intimamente ligada às vitórias e derrotas de sua Unidos de Vila Isabel. No Carnaval 2017, o cantor e compositor desfilará mais uma vez pela azul e branco e com um motivo todo especial: comemorará os 50 anos de seu primeiro samba-enredo pela escola. “Carnaval de Ilusões”, apresentado em 1967, ajudou a revolucionar a estética dos sambas. Se até então eles eram longos e de melodias rebuscadas, Martinho trouxe a simplicidade nos versos, além do uso de outras referências, como cantigas de roda. A inovação do gênero permitiu a sua execução nas rádios e o lançamento, já em 1968, do primeiro LP das escolas de samba.

Em entrevista ao UOL, Martinho rememora sua trajetória ao longo desse meio século e fala da expectativa para o desfile, em que o Carnaval de 1988, “Kizomba, Festa da Raça”, elaborado por ele, será relembrado por sua escola de coração.

13.dez.2015 - Martinho da Vila participa de ensaio técnico da Vila Isabel - Daniel Pinheiro/Agnews - Daniel Pinheiro/Agnews
Martinho da Vila veste a camisa de sua escola e vibra na Marquês de Sapucaí, em ensaio técnico para o Carnaval 2015
Imagem: Daniel Pinheiro/Agnews
UOL -- É impossível dissociar a sua imagem da Vila Isabel, então poucos sabem que você começou sua carreira na hoje extinta Aprendizes da Boca do Mato.
Martinho da Vila -- Era uma escola pequena, que chegou até o primeiro grupo. Enquanto isso, a Vila estava no terceiro grupo. E aí a Boca do Mato começou a cair e a Vila subiu para o desfile principal. A escola foi parar no último grupo e eu desanimei um pouco, vi que não iria ter muito futuro. Nos preparativos do Carnaval de 1966, o China, que era o presidente da Vila Isabel, me chamou para a ala de compositores e para dar uma força na organização da escola. Naquela época, quando um sambista mudava de escola, tinha que ficar um ano de quarentena, sem desfilar na outra. Era uma questão de ética. Então, em 66 eu já estava na Vila, ajudei, mas não desfilei. Pouco depois, a Aprendizes acabou.

Nessa época você ainda não vivia de samba, não é?
Ainda não. Foi justamente o começo da minha carreira artística. Minha estreia na Vila foi justamente no ano em que consegui classificar uma música (“Menina Moça”) para o 3º Festival de Música Brasileira, em São Paulo. Isso causou um furor, já que nunca um partido alto tinha participado de um festival. Aconteceu tudo ao mesmo tempo na minha vida.

Em seu primeiro ano na Vila, você faz um samba-enredo diferente, “Carnaval de Ilusões”, com citações de cantigas de roda. Como surgiu essa ideia?
Nós tínhamos dois carnavalescos, o Dario e o Gabriel, e fizemos uma reunião para planejar o Carnaval. Chegamos à conclusão de que tínhamos de fazer algumas novidades para nos fixarmos como uma grande escola. Eles tiveram a ideia de fazer um enredo infantil, o que era uma novidade, já que os enredos eram sobre história do Brasil. Seria um Carnaval de Ilusões. Uma criança, que ouve as histórias infantis e sonha com todos os personagens na avenida. A ideia era ótima. Houve algumas resistências, mas o trabalho andou. Aí me pediram para fazer um samba diferente, e o fiz em parceria com o Gemeu. A escola inovou também ao se apresentar colorida, fugindo de suas cores tradicionais, o que não era comum. Fizemos um grande Carnaval e ficamos em quarto lugar. Achávamos que ganharíamos.

Seu samba tomou nota baixa do Chico Buarque. Dizem que ele teria dormido.
Essa história tem várias versões. Eu nunca conversei com ele sobre isso. Parece que ele se confundiu, achou que iria julgar harmonia e era jurado de samba-enredo. Mas o episódio deu samba: “Caramba”, que gravei em meu primeiro disco, e dizia: “Caramba, nem o Chico entendeu o enredo do meu samba”.

Depois você venceria a disputa de samba da Vila Isabel por mais 11 vezes. Quais são seus sambas preferidos?
Eu gosto de todos. Não dá para escolher um favorito porque eles são bem diferentes. Por exemplo, “Quatro Séculos de Modas e Costumes” (1968) e “Iaiá do Cais Dourado” (1969) têm uma cadência que vem do “Carnaval de Ilusões”. “Raízes” (1987) e “Gbalá” (1993) têm melodias inovadoras e diferentes do que era feito. Gosto muito de “Pra Tudo se Acabar na Quarta-Feira” (1984). “Sonho de um sonho” (1980) é muito importante porque é um samba feito na época da ditadura, e falávamos de prisão sem tortura. E também foi inspirado em uma poesia do Drummond, que chegou a me ligar e agradecer pelo samba.

Falando em ditadura, você sofreu com a censura dos militares em seus sambas-enredo.
Eu perdi dois sambas por causa da ditadura. “Tribo dos Carajás” (1974) foi o primeiro. A diretoria cortou meu samba a pedido dos militares, já que eu fazia críticas à construção da Transamazônica. O pior é que eu não sabia o porquê e o pessoal da escola não podia dizer (risos). O outro foi “Iemanjá Desperta” (1978), por causa da frase “Toma conta desse povo sofredor”.

A derrota em 1974 serviu, ao menos, para que você fizesse “Renascer das Cinzas”, que hoje é um hino da escola.
Sim, é verdade. A escola desfilou muito mal e quase foi rebaixada. Aí eu fiz essa música para levantar o moral da galera. Cheguei na quadra e comecei a cantar. E o povo só chorava. Eu não entendi nada (risos).

Vila Isabel - 1988: "Valeu, Zumbi! Um grito forte dos Palmares...". O samba-enredo que celebrou o centenário da abolição da escravatura no Brasil sob o olhar do escravizado é um dos mais conhecidos sambas do Carnaval brasileiro. Com ele e, no mesmo dia que Martinho da Vila aniversariava, a Vila Isabel alcançou o primeiro título do Grupo Especial de sua história. - Jorge Araújo/Folhapress - Jorge Araújo/Folhapress
A Vila Isabel ganhou seu primeiro título em 1988, celebrando o centenário da abolição da escravatura
Imagem: Jorge Araújo/Folhapress
A Vila foi campeã pela primeira vez em 1988 com um samba que não era seu. Porém, você teve participação decisiva em "Kizomba". Como foi fazer aquele Carnaval?
O samba não era meu, mas o enredo era! (risos). Tomei conta de tudo. Eu pedi aos principais compositores da ala, que eram o Luiz Carlos da Vila, o Jonas e o Rodolfo, para que fizessem um samba caprichado. E eles fizeram. “Kizomba” hoje é um clássico. E nós conquistamos o Carnaval do Centenário da Abolição.

Você só sentiu o gosto de ser campeão do Carnaval com um samba seu em 2013. Como foi a sensação?
Foi muito emocionante. Quase toda a imprensa disse que o samba foi o grande responsável pela Vila ganhar o Carnaval. Fiquei muito feliz até porque isso é muito raro.

17.fev.2013 - Rosa Magalhães e Martinho da Vila desfilam pela Vila Isabel - Marcelo de Jesus/UOL - Marcelo de Jesus/UOL
Rosa Magalhães e Martinho da Vila, campeões pela Vila Isabel em 2013, com um samba do compositor
Imagem: Marcelo de Jesus/UOL

Como você vê o momento do samba-enredo, com as disputas dentro das escolas cada vez mais caras e execuções em rádio mais escassas?
Essa é uma transformação difícil de reverter. As disputas sempre foram tensas, mas hoje em dia virou um espetáculo. Cada concorrente tem que fazer um show na quadra e o custo é muito alto. Em 2013 eu não queria fazer o samba com muita gente. Mas me disseram que se tivesse mais gente, ficaria mais fácil para bancar. E acabou saindo.

Hoje em dia ainda se faz samba-enredo bom?
Os sambas desse ano estão bons. O da Vila é bom, o da Beija-Flor também é legal.

Como você pretende comemorar os 50 anos de Vila na avenida?
Estarei na avenida e, de certa forma, o desfile é uma homenagem a mim porque o [carnavalesco] Alex de Souza se baseou em textos meus sobre a influência da música negra na América Latina. E terá uma citação a "Kizomba", com uma réplica do desfile. Eu vou representar o Paulo Brazão, um dos grandes compositores da escola. Ele, no "Kizomba", desfilou em um trono à frente da escola. Esse ano eu irei com uma roupa idêntica, no último carro, também sentado em um trono. Será muita emoção.

Neste ano você está um pouco afastado da escola para dar mais atenção à sua carreira. Mesmo assim, consegue ficar a par do que acontece por lá?
Sim, eu sei de tudo, estou sempre bem-informado, indo ao barracão.

Sua neta, Dandara Ventapane, deixou o cargo de porta-bandeira da Vila e foi para a União da Ilha. Como você se sente?
É um pouco chato. Se eu estivesse mais atuante na escola, eu não teria deixado isso acontecer. Foi uma bobeada da Vila. O mestre-sala, o Phelipe Lemos, recebeu uma proposta boa da Ilha, e a Vila não cobriu. Ele chamou a Dandara e ela foi. Ela ficou em dúvida se iria e me perguntou. Eu disse: “Netinha, o samba hoje é profissional. É igual jogador de futebol. Você pode ser Vasco e jogar no Flamengo”.

Como grande vascaíno, você, se fosse jogador, conseguiria vestir a camisa do Flamengo?
Nem pensar! (risos). Eu sou Vasco e Vila Isabel!