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Anderson Baltar

O Carnaval carioca precisa de um novo modelo de financiamento

Em 2018, Beija-Flor levou para Sapucaí desfile político com enredo sobre critica injustiça social e intolerância - Júlio César Guimarães
Em 2018, Beija-Flor levou para Sapucaí desfile político com enredo sobre critica injustiça social e intolerância
Imagem: Júlio César Guimarães

08/11/2018 18h36

Nascidas no seio de populações pobres da região do Estácio e de diversos morros da cidade, as escolas de samba cariocas surgiram do esforço comunitário. Moradores de uma mesma região se irmanavam no objetivo de colocar as suas agremiações na avenida. Através do "livro de ouro", percorriam os comerciantes de seus bairros e buscavam contribuições para a confecção de suas então primitivas alegorias e fantasias. Com a oficialização dos desfiles pela Prefeitura do Rio, em 1935, surgiu a subvenção oficial --mas sempre em valores insuficientes para cobrir todos os gastos das escolas. Rebolar, metaforicamente, era necessário.

Com o crescimento dos desfiles, eles deixaram a região da já extinta Praça XI e chegaram aos palcos principais da cidade: Avenida Rio Branco e, posteriormente, Presidente Vargas. Já acompanhadas por milhares de pessoas e turistas, as escolas de samba tornaram-se um ambiente propício para o surgimento de mecenas: os banqueiros do jogo do bicho. Portela, com o mítico Natal, e o Salgueiro, com Osmar Valença, foram as primeiras. Na década de 1970, surgiu um trio de escolas, até então coadjuvantes e que, com a força dos banqueiros, tornaram-se potências: Beija-Flor, Imperatriz Leopoldinense e Mocidade Independente de Padre Miguel.

Sapucaí 1984 - Lewy Moraes/Folhapress - Lewy Moraes/Folhapress
Desfile de blocos durante inauguração da Sapucaí, em março de 1984
Imagem: Lewy Moraes/Folhapress

Os anos 1980 representaram o apogeu midiático do desfile das escolas de samba, que, já na Marquês de Sapucaí, tornou-se um grande espetáculo televisivo. O LP dos sambas era um dos mais vendidos nas paradas, rivalizando com os lançamentos anuais de Roberto Carlos. O país inteiro sabia cantar todos os hinos das escolas.

Os banqueiros, com todo esse sucesso, tornaram-se verdadeiras celebridades, recebidos com pompa e circunstância em gabinetes governamentais. Surgiu a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro) e a desorganização dos horários e as apurações controvertidas --marcas dos tempos em que o desfile era gerido pela Riotur-- tornaram-se coisa do passado.

Com subvenções mais justas, cotas de televisamento, venda de discos e o aditivo natural dos patronos, as escolas de samba viveram seu apogeu financeiro. Na década de 1990, após uma série de liberações no regulamento, dezenas de empresas e governos estaduais, municipais e até internacionais investiram dinheiro no desfile. O auge do enredo patrocinado coincidiu com a queda na qualidade geral dos sambas. A preocupação exagerada com o show business fez as escolas se distanciarem de suas comunidades. Só interessava quem poderia entrar na quadra, pagar ingresso, comprar cerveja e adquirir uma fantasia. Por outro lado, com um forte esquema de marketing, o carnaval baiano conquistou grande parte da mídia que antes era destinada à Sapucaí.

Este modelo perdurou até o início da atual década e legou à história das escolas de samba desfiles com temas inacreditáveis como o iogurte, o Rock In Rio, a Coreia do Sul e os personagens da Disney. Porém, nos últimos anos, por conta da crise financeira, os patrocinadores sumiram. Em meio a tantos escândalos do mundo político, os patrocínios estatais minguaram. Em um dos últimos exemplos bem-sucedidos de patrocínio, o apoio da Guiné Equatorial para a Beija-Flor, em 2015, tem indícios de apoio de empreiteiras brasileiras sediadas no país africano.

A chegada do pastor neopentecostal Marcelo Crivella à prefeitura do Rio marcou um momento de ruptura. Ao contrário de seu antecessor, Eduardo Paes, que todos os anos fazia questão de acompanhar os desfiles e nunca escondeu sua paixão pela Portela, o novo alcaide empreendeu uma série de restrições à festa. A principal, o corte da subvenção pela metade, com o discutível argumento de que o dinheiro seria melhor usado para a merenda das creches --ao que consta, não houve nenhum incremento na alimentação das crianças.

Vista da Sapucaí - Douglas Shineidr / UOL - Douglas Shineidr / UOL
Imagem: Douglas Shineidr / UOL

Reféns do apoio oficial

Costuma-se dizer que, em meio à crise, surge a oportunidade. As escolas de samba cariocas não aprenderam esta lição.

Após cancelarem os ensaios técnicos e promoverem um enxugamento no número de carros alegóricos e fantasias, os dirigentes do Carnaval ainda continuam reféns do apoio oficial. Para 2019, o ritmo de trabalho na Cidade do Samba ainda não chegou ao nível ideal por uma série de entraves: a demora na assinatura do contrato de cessão da Passarela do Samba, que ocasionou o atraso na venda de ingressos; a falta de definição nos repasses oficiais e, sobretudo, a falta de criatividade na busca de novas soluções e patrocinadores.

Cabe destacar também que, em meio a um cenário de crise, não é muito inteligente rasgar o regulamento e cancelar o rebaixamento por dois anos seguidos, favorecendo algumas escolas que não tiveram mérito de permanecer no Grupo Especial. A falta de credibilidade nos resultados afasta os patrocinadores. Por falta de financiamento, certamente não teremos mais uma vez a temporada de ensaios técnicos.

Em meio a este cenário, nesta quinta-feira (8), surgem as denúncias contra o presidente da Mangueira, Francisco de Carvalho. Ao assumir a verde e rosa completamente arruinada financeiramente em 2013, ele teria recebido pelo menos R$ 1 milhão em propina do ex-governador Sérgio Cabral para ajudar na preparação da escola para o Carnaval seguinte. Um dos artífices do apoio dos dirigentes do samba ao prefeito Crivella, o presidente mangueirense acabou de ser reeleito para mais um mandato de deputado estadual.

Este caso, que atinge em cheio ao Mundo do Carnaval, é apenas mais um capítulo da histórica incapacidade das escolas de samba, esse patrimônio de nossa cultura popular, em se instituírem como organismos autossustentáveis. Em um momento em que não há respaldo governamental, em que estão divorciadas do povão (50% dos cariocas nunca pisaram na Sapucaí) e em que certas relações indesejáveis vêm à tona, as agremiações precisam, para ontem, encontrar formas mais inteligentes e sustentáveis para sua sobrevivência.

É fundamental transparência, respeito às regras, criatividade. E as escolas entenderem, de uma vez por todas, que se fechando em relação às suas comunidades, elas não terão mais o respaldo do cidadão comum. Já foi o tempo em que qualquer criança tinha seu time de futebol e escola de samba do coração. Para o carioca médio, o desfile é um show particular para turistas, financiado pelo dinheiro público e onde ele não tem lugar. Mesmo não sendo fiel à realidade (a verba pública representa em torno de 20% dos gastos das escolas), essa é a versão recorrente, sobretudo em tempos de fake news e pós-verdade.

A luta para reerguer o Carnaval das escolas de samba cariocas será longa e penosa. Cabe saber se a Liesa e suas afiliadas estão dispostas a virar esse jogo. 

Anderson Baltar